Por Geferson Kern
OK, Niki. Chegou a hora de nos despedirmos de você. Permita-me chamá-lo assim, ainda que nunca tenhamos nos conhecido. Aliás, eu o conheci por ser piloto, o que você nem era mais quando cheguei ao mundo. Havia parado há quatro anos. O conheci quando criança, nas páginas já rasgadas de uma Quatro Rodas velha. Você se preparava para ser tricampeão, eu para sair do primário. As pessoas já falavam muito bem de você. Então o chamarei assim mesmo, de Niki, esta corruptela do Andreas Nikolaus Lauda que constava no seu documento de identidade. Acho que você não se importaria: parecia um sujeito sisudo e ao mesmo tempo divertido, afinal. Sua reação quando Nelson Piquet sentou no seu colo num reencontro de ex-pilotos em Zeltweg em 2015, ou quando beijou sua bochecha para o mundo todo na TV, mais ou menos na mesma época, atestam isso.
Acima de tudo, é preciso lhe cumprimentar. Você ganhou três títulos mundiais, venceu 25 corridas, foi 54 vezes ao pódio e largou 24 vezes da pole. Fez igual número de voltas mais rápidas. Já aposentado, teve papeis chave em três times diferentes, de três grandes montadoras do planeta – Ferrari, Jaguar e Mercedes. Mandou tudo às favas quando ainda estava no auge, voltou após dois anos parado e foi campeão de novo. Você sabe bem o que aconteceu com grandes tipos como Schumacher e Räikkonen quando tentaram fazer o mesmo. O Prost não conta: ficou só um ano parado e aquele carro que ele pilotou em 1993, meu amigo, até um macaco pilotaria – você não estava de todo errado quando falou isso daquela Jaguar, que era mesmo uma porcaria.
Você está em qualquer lista dos dez maiores da história – e isso pode ser uma injustiça. O francês, se não tivesse aquele carro de outro planeta, como dizia aquele jovem que lhe peitou em Mônaco no ano de seu último título, seria tricampeão como você. E ele é quase unânime na lista dos cinco melhores, ainda que seu último pupilo, Hamilton, tenha se esforçado dia após dia para tornar obsoletos os registros históricos sobre os maiores. Se você é um dos três, dos cinco, dos dez, não importa a esta altura. Há vitórias suas que pouquíssimos caras sob o sol sonhariam em conquistar. Afinal, o adversário foi aquele, como sabemos desde que nos damos por gente, sempre prevalecerá no fim.
Sua família não queria que você se tornasse piloto. Sua família era rica e tinha negócios a tocar – uma usina de papel, leio em Corrida para Glória, do autor Tom Rubython, o livro que inspirou aquele filme que chegou a me deixar puto por fazer você parecer o vilão contra o carinha descolado que todo mundo queria ser, mas se você aprovou se divertiu, está tudo bem. Você até prometeu que ia parar, mas aquela vitória numa subida de montanha que seus pais descobriram pelo jornal foi a gota d’água. Era a família ou o automobilismo. Que escolha óbvia. Você abandonou o berço esplêndido e foi em frente em busca do seu sonho, da única coisa que realmente lhe despertava interesse. Só aí você já era um vencedor, mas haveria muito mais por vir.
Depois de dois anos na Fórmula 1, as dívidas eram insuportáveis. Você havia pago caro para correr. Foram muitos empréstimos. Seu avô Hans chegou a impedir que um deles, de vultuosos 100 mil dólares, ocorresse, mas você conseguiu de outras formas. Ainda assim, os resultados não vinham. Você ficou em dúvida. Era mesmo tão bom quanto pensava? E se você ficasse sem nada? Sem a família, sem sua paixão, sem suas convicções, sem dinheiro pra coisa alguma? Quando você saiu da fábrica da March depois de discutir com Max Mosley, aquele nazi-masoquista safado, sabia muito bem que a estrada terminava num muro. Era só acelerar e acabar com tudo. Você fez o que mais sabia: acelerou e acreditou em si. Desistiu do fim no meio do caminho para começar de novo. O suicídio não era uma opção. Superar a tentação de acabar com tudo quando parece não haver mais saída, o fetiche mais tacanho que a mente pode nos impor – e que leva daqui muita gente, dos quais muitos são ótimos como você foi –, foi sua primeira vitória.
Aí você foi para aquela BRM que estava tão endividada como você e foi tão bem em Mônaco ’73 que fez Enzo Ferrari sair da Itália, o que ele raramente fazia, para ir até Zandvoort lhe conhecer. O cara queria lhe contratar. Já estava há quase dez anos sem ganhar um título. Agora você ganhava um salário. Podia usá-lo para pagar suas dívidas e sua rescisão contratual com a BRM e ir a uma equipe que lhe daria condições de chegar onde sempre quis. O resto é história: você já era para ter sido campeão no seu primeiro ano, em 74. Fez nove em 15 provas, seis delas consecutivas. Você saiu da Inglaterra líder, mas ficar sem pontuar aquelas seis últimas provas doeu. E custou a primeira chance de realizar sem sonho. Sem problemas. O ano seguinte estava logo ali e seu título seria incontestável. Provava a si, a sua família e ao planeta que você estava certo e era o melhor de todos. Você era mais do que nunca um vencedor, mas ainda haveria bem mais.
Nürburgring ’76 nunca deveria ter acontecido. Como não só na pilotagem você estava à frente do seu tempo, foi o único a perceber isso, mas foi voto vencido. Aí aconteceu tudo aquilo. O acidente, o fogo. A solidariedade do Arturo Merzario, do Brett Lunger, do Guy Edwards e do Harald Ertl, que pararam os carros para lhe ajudar – o circuito e sua estrutura, você avisou uma semana antes, não tinha condições para tal. O italiano, no ímpeto de lhe tirar daquele inferno de calor, chegou a arrancar seu capacete, que já estava torto pela força da batida. Ertl, seu conterrâneo, mirou o único extintor de incêndio que encontrou em você, que não pode evitar de inalar muita fumaça tóxica nos seus pulmões. A dor era inimaginável, mas você ficou de pé, literalmente. Era como um cavaleiro que saía das profundezas após vencer uma batalha cara a cara com o próprio coisa ruim.
Seu rosto estava destruído. Seus pulmões, idem. O padre lhe deu a extrema unção. Perdeu seu tempo: você havia vencido de novo. E com louvor. Fosse na pista, seria um Grand Chelem – e com uma volta de vantagem sobre quem vinha atrás.
Quarenta dias depois de quase morrer, você voltava a um carro de corridas. E isso era surreal. Dane-se o campeonato de 76 e aquela gente sem noção que descumpriu o acordo de dar só uma volta no aguaceiro de Fuji e recolher. Com as pálpebras queimadas e os enxertos após o acidente, você mal conseguia piscar. Foi macho de admitir que parou por falta de condições, muito mais do que os caras que continuaram na pista. Não fez falta: você ganhou de novo em 77, 84 – aquele meio ponto em cima do Prost foi cruel –, se aposentou, lidou com sua outra paixão – a aviação, foi dirigente de equipes – os caras sabiam que, para ganhar nesse negócio, precisam ter conhecedores dos pormenores por perto. Você a pleno aquele seu sonho de tantos anos antes, mas ainda havia uma missão.
A Mercedes que você ajudara a transformar na equipe mais vitoriosa em todos os tempos na Formula 1 – você não vai ver isso se consolidar, mas acontecerá, em definitivo, dentro de alguns meses – já era uma potência histórica quando seu pulmão adoeceu. Já se passavam mais de quatro décadas desde aquela desgraça em Nürburgring. Um transplante de pulmão era – e é, isso foi há alguns meses, apenas – algo difícil e raro, mas você encarou. Foi ainda pior do que 42 anos antes, segundo você mesmo. Desta vez, não foi possível sair do hospital em menos de 40 dias. Foram alguns meses lá, mas você perseverou e venceu. Pode passar seu último Natal com sua família – a que você construiu, não a que lhe expulsou quando você decidiu perseguir um objetivo que soava insano aos Lauda – e, cá entre nós, eles tinham boas razões para pensar assim.
Segunda-feira é dia de pós-grande prêmio. Não teve corrida no fim de semana, mas seu antigo time, a McLaren, fez um fiasco daqueles em Indianápolis. Estávamos todos ainda em busca de entender o que aconteceu quando veio a notícia: você havia partido. A morte, depois de tanto tentar, finalmente lhe pegou. A gente já sabia, você também: um dia ela vence.
Mas não se preocupe: pelas minhas contas, o placar está 3 a 1 para você. E o jogo acabou. A morte te pegou como pegará a todos nós, mas até lá, você fez com ela o mesmo do que o Prost e o Piquet nessa foto naquele dia na Áustria. Eu fico abismado com o que algumas pessoas fazem aqui na Terra. Como aquele italiano, o Zanardi, que corria quando você foi ser consultor da Ferrari, que na Fórmula 1 era não muito mais do que seu ex-companheiro Nanni Galli e fora dela é Fangio. Mas os seus feitos, meu bom homem, são dignos de santificação.
Niki, você venceu. Vá em paz e com um sorriso. Como se fosse dar o último troco naquele sacana do Nelson.
FOTO DA MATÉRIA: No clique de José Mário Dias, Niki Lauda está segurando um alicate. O Público deu a ele o alicate que cortaram a cerca para estar mais perto dele. Tamanho carinho dos Brasileiros pelo piloto!
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